Highland 2 e Gender Analysis

By Eduardo Albuquerque - 7/21/2018



Eu já falei sobre como o Highland é um programa infinitamente superior ao Final Draft e como todo mundo deveria tentar usá-lo. Mas agora que saiu o 2.0 dele... na boa; quem continuar no Final Draft é ou usuário exclusivo do Windows (só tem pra mac =/), ou burro ou masoquista ou rico excêntrico que gasta dinheiro com coisas doidas.

Não tem NADA além que justifique o uso do Final Draft.

Preço? A versão básica é de graça. Se quiser desbloquear a versão full é 40 dolares. Muito mais barato que os surreais 200 e porradas do Final Draft. Sendo que a versão full só retira a marca d'água "made in Highland" e algumas brincadeiras tipo "dark mode" etc. então você pode tranquilamente ficar no de graça até a coisa ficar séria também.

Features de produção? Cara, exporta pra .fdx (sim, ele faz isso) e dá pra alguém de produção se virar; isso não devia ser coisa pra roteirista. E, em breve, tenho certeza que até isso vai dar pra fazer; trancar página e o caralho a quatro.

Escrever nele é uma delícia; resgata toda a graça perdida nas engrenagens duras e enferrujadas do Final Draft. A interface é agradável e a linguagem markdown intuitiva. Eu já amava a primeira versão - escrevi dois roteiros lá do início ao fim - mas ainda usava o Final Draft de vez em quando e o Word(!) para documentos ancilares. Mas agora que o Highland ta fazendo a porra toda - tem template/linguagem pra roteiro (de série e filme), peça, manuscrito, texto livre... - vou começar a usar pra tudo.

Mas esse post não é uma publicidade do Highland. Pelo menos não diretamente. A questão é que nessa nova versão, além de tudo isso que falei, tem duas coisas bem legais. Uma, o writing sprint: você determina um tempo pra poder se concentrar 100% na escrita e o programa recorda exatamente o que você conseguiu da sua meta. As vezes é necessário um momento de foco total e a gamificação da coisa ajuda bem. Já a segunda, é a mais interessante, para mim.

O Highland tem uma ferramenta chamada Gender Analysis que cata o roteiro e faz um breakdown de todo o diálogo separando personagens masculinos de femininos. Você sabe que é uma coisa genial quando pensa "Dur, mas.. meio óbvio isso; nada demais" e depois completa "bom, mas ninguem fez antes, né?"

É uma ferramenta incrível pra olharmos nosso bias e acabar com qualquer desculpa que nos deixava longe de ter o roteiro mais realista possível. Mais do que dizer quantas falas cada um tem, ele fala quantas palavras são faladas - o que é muito legal, pois as vezes a gente vai botando personagens femininos só para equilibrar a balança, mas é algo pouco importante pra história, clichê como uma garçonete cujo a fala é "Here's your coffee, honey".

Resolvi brincar e testar algumas coisas minhas pra ver como me saí.

Primeiro vamos pro A esperança é a última que morre, que vocês podem assistir pra fazer a prova dos nove no Google Play, no iTunes ou no Telecine Play - espero que já tenham assistido!

Eu sempre julguei Esperança como bem feminista - mas sem ser planfetário. Temos uma protagonista feminina, a Hortência, buscando um sonho tal qual a maioria esmagadora dos protagonistas masculinos o fazem; nada a ver com o sexo deles, nem com a afirmação sexual - embora, é claro, faz parte da vida de toda mulher no mundo em que vivemos, então ela tem que lidar com o chefe machista (esse sim o vilão) pra poder seguir nesse meio.

Apesar de ter um storyline de romance, é uma história B; está longe do romance ser *a coisa* dela - na real, poder-se-ia até forçar a barra e dizer que o romance é *a coisa* sim do Eric, seu coadjuvante. - mas gosto de me dar o crédito de que ele também tem suas questões pessoais além da sua paixão; tanto que em dado momento se volta contra ela por não concordar com suas atitudes.

E, por fim, a "lição moral" do filme faz Hortência pagar por tudo e refutar a estrutura de poder patriarcal da emissora de TV, que ela ajudou a diminuir um pouco, tirando os vilões dali e botando sua rival Vanessa na cadeira de âncora sozinha, mas que, logicamente, ainda conservava muito do que ela não achava legal. Preferiu abdicar daquilo e - aí sim - investir no amor, na igualdade, e no carinho enquanto negócio, ao lado de pessoas com a mesma mentalidade dela.

Sem falar que o personagem bastião da moral do filme, que em nenhum momento peca, está sempre do lado da lei (literalmente) e buscando fazer o que é certo e moral, era uma mulher: a Tenente Danuzia. E ainda tinha a ceninha pós-crédito pra Vivian dar uma mijada no JP, representante mór do machismo...

Mas... quando rodei o Gender Analysis...




Fiquei bem surpreso com o resultado!

Assim; é possível fazer um filme só com mulher e ser machista pacas e um filme só com macho e ser feminista toda a vida. Possa crer. Mas não sou maluco de brigar com número e, sendo pragmático,  preto no branco, a estatística fala que ainda assim meu bias talvez tenha como standard dado mais destaque número aos homens do que as mulheres.

A imagem acima é o quadro geral do filme, incluindo todos os personagens, mesmo os tipo as garçonetes. Pra quem não consegue ler e tem preguiça de clicar pra aumentar a foto...  

20 personagens masculinos (57%)
13 femininos (37%)
2 não especificados (tipo "Assistente": nem nas falas e descrição especifiquei; deixei aberto mesmo)

Mas aí entra o que eu falei e acho que faz até sentido: se o filme fala sobre esse mundo de poder do telejornal, é lógico ter mais personagem masculino mesmo. O que precisava era subir o número de falas para igualar e assim o é; as 37% tem destaque equivalente a 46%, enquanto os homens tem mais quantidade mas menos qualidade:

350 falas de personagens masculinos (53%)
303 falas de personagens femininos (46%)
4 não especificados
15 cenas com duas ou mais mulheres interagindo (ou seja, passa no Teste de Bechdel com os pés nas costas)

Uma coisa, antes de seguir...

Esta questão do não especificado; eu acho saudável. Sei do lance de que você, como roteirista, tem que ser capaz de imaginar tudo da história e bla bla bla... mas é imaginar apenas! Não precisa determinar. Tem coisa que, de verdade, tanto faz. E você ficar vaticinando que é isso ou é aquilo, acaba por vezes dificultando surgir gente nova interessante e diversa. Eu acho que a gente tem que ter a orelha em pé e o olho aberto pra essa questão de diversidade na nossa história pra representar o mundo que estamos retratando. Se tiver aquém da realidade, damos uma pesada na balança pra equilibrar. Mas se tiver naturalmente próximo de um equilíbrio, onde a escolha do sexo serve à narrativa que você traz, vale deixar esses em aberto para que o olhar do diretor de elenco e da produção como um todo, contemple todas as possibilidades. Se eu fosse mega descritivo quanto ao MALUCO 3, ou sei lá como eu chamei o personagem que o Ben Ludmer interpretou na hora do "Povo Fala" logo depois do midpoint do filme, talvez ficassem enviezados pela descrição e não trariam ele que fez tanto da pequena ponta que tinha.
  
Seguindo... 

Excluindo todos os personagens de apoio, deixando só os mais importantes - fiz um corte de quem aparecia em mais de 3 cenas e tinha participação "decisiva" na trama - ficou mais interessante ainda. Vejam só:


As personagens femininas passaram a ser maioria - 5 contra 4 masculinos - mas curiosamente os homens falam mais em matéria de palavras: 4.657 (54%) contra 4.035 (46%).

Poderia dizer que é um reflexo de como o homem tem mais liberdade para falar o quanto quer e a mulher pega um segundo plano e bla bla bla? Poderia. Mas estaria mentindo. Se tinha algo que eu queria discutir com o filme era mais a questão do conceito de verdade e mentira e as brincadeiras de mexer com as linhas disso - algo que me acompanha em diversos projetos; desde o primeiro curta que escrevi e dirigi, o Pseudociese (10 anos atrás; to velho!) - a questão de como a crise de credibilidade do jornalismo que se confunde com entretenimento é grave, especialmente quando tocada com o sistema da fama e o poder que pode exercer nas pessoas que, no fim das contas, só querem ser amadas. A questão feminista que podemos ver no filme (e pra mim tem sido até decentemente vista nos números do Gender Analysis do Highland) é só uma questão de eu tentar contar uma história realista que entretesse todo mundo - o requisito básico e inicial de qualquer história - e, para isso, não tem como não ter um equilíbrio aqui. Esse mundo retratado é cheio de mulheres, mulheres que tem seus sonhos e não vivem para servir aos homens.

O número de cenas onde duas personagens femininas ou mais interagem cai pra 6, mas nem sei analisar se isso é ruim ou bom. No geral cai, mas considerando que são só as cenas com o povo principal, caiu pouco. É um número substancial. E também teria que analisar o que rola tanto nessas cenas quanto nas outras 9 onde tinham os outros personagens mais secundários. Não fiz esse mergulho.

Mas vamos analisar outro roteiro: o de Orlando, Florida, um filme que escrevi pra Universal Studios, mas ainda não filmado. Esse eu achei que ia ser exageradamente o contrário: com uma presença exorbitantemente masculina, afinal é um buddy movie two hander de um menino e um homem...



A surpresa foi o contrário... até que não achei tão desastroso. Se ficasse só no Teste de Bechdel, tem 9 cenas onde duas mulheres interagem! Acho que pode ser melhorado esse equilíbrio, porém mais no campo qualitativo que quantitativo. O protagonista é falastrão, e a trama gira numa questão masculina mesmo, coming of age e aquelas coisas. Carregar de personagens femininos, dando falas pra compensar, vai é tirar todo realismo da história e no final acaba sendo um deserviço à igualdade de gênro, pois seria feito de forma paternalista. e aí voltaríamos à estaca zero.

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