Claro que você, roteirista antenado, está acompanhando o que tem rolado em Hollywood acerca das diversas denúncias de assédio sexual. Muita gente tá expondo seus casos e, com isso, gente "graúda" está rodando.
De Harvey Weinstein a Dustin Hoffman, Kevin Spacey, Louis CK, James Toback, Bryan Singer, Brett Ratner, John Lasseter, Danny Masterson, Jeremy Piven, Jeffrey Tambor... A lista (já) é longa e, tenho certeza, tem espaço para aumentar muito mais, uma vez que não tem como fugir: Hollywood é uma indústria que basicamente lida com "sonhos"; dentro de um mundo patriarcal, machista como o nosso, naturalmente pessoas se aproveitam da facilidade de caminho de abuso de poder e agem desta forma predatória.
Minha opinião sobre isso? Acho ótimo. Que caiam todos! Toda a força e apoio às mulheres (e homens) que foram vítimas. Que a era do "abafa" tenha ficado para trás.
O que fico pensando é o quão transformador esse movimento pode ser. O audiovisual é um mercado muito pautado por "poder" e acho que, no fundo, a grande revolução que está acontecendo também no cinema, mas no mundo todo, é uma desvalorização do conceito de "poder" e um deslocamento em direção à "diplomacia". "Poder" fazia sentido em épocas de guerra física e armada, belicosa. O mundo está super populado, não comporta mais esse tipo de guerra sem causar danos colaterais a parceiros ou até ao próprio atacante. Faz-se guerra de inteligência, química ou muito concentrada; logo a moeda de poder passa a ser "educação", "sagacidade", "inteligência", "empatia" e não garganta, força bruta, ignorância e intimidação. O único último poder que existe é o financeiro, pois "a infraestrutura determina a superestrutura". E foi aí que a coisa pegou e fez a diferença lá em Hollywood. A perda financeira que estes casos causavam era maior do que o "clube do bolinha" ou a "força" que os abusadores tinham. Refilmaram todas as cenas com Christopher Plummer no lugar de Kevin Spacey no filme "All the money in the world", porque o filme ia naufragar terrivelmente. Custou cento e tantos milhões e ninguém ia ver, nenhuma atriz ia querer divulgar o filme... muito mais fácil botar outro ator e tentar salvar o investimento, certo? E, com a recorrência destes abusos vindo à luz, este cuidado, espero, passará a ser preventivo e pessoas deste tipo nem chegarão a serem envolvidas em projetos deste calibre; se tornam o que chama de "liability".
Conversei com colegas da indústria sobre o caso. A maioria concorda com esta linha; a era dos diretores esporrentos, dos produtores que lideram por medo, dos Professores Fletchers (do filme Whiplash) está em seu ocaso. Vem aí a era da diplomacia, do diálogo, do vencer pela qualidade e coerência do argumento artístico e não pela intimidação hieráquica extra discussão de idéias/visões tão comum em nosso meio.
No entanto, houve gente que defendesse que, salve casos de assédio sexual, no fim das contas o que importa é quem "entrega", logo, tolerar-se-ía os profissionais "de personalidade forte", caso eles fizessem bons trabalhos. Eu realmente não gosto dessa visão. Primeiro que o assédio sexual e o abuso de poder fazem parte da mesma efera. E outra que, apesar da boa ficção aparentar realidade; elas não são a mesma coisa. Esses argumentos de que o bom ator "vive" de fato (à la method acting) o papel, ou que o roteirista, para escrever um drogado, tem de ter se drogado... é uma grande balela. Quer dizer então que o George Lucas já foi pro espaço várias vezes?! Então, não compro isso de que o drama real numa produção é colateral das gênias mentes por trás do processo. Isso é um argumento torpe de quem quer usar suas qualidades como escudo para seus defeitos. Uma coisa independe da outra. É perfeitamente possível ser profissional e legal e fazer um bom trabalho. Não tenho a menor dúvida. E mesmo se tivesse, se as boas obras só existissem quando houvesse essa "entrega" e outras palavras que andam numa linha tênue do abuso de poder, acho que a possibilidade da população poder assistir uma boa obra de arte não pode ser mais importante do que a dignidade, a sanidade e, em muitos casos, até a saúde de uma só pessoa que tem que pagar por todos.
Que Hollywood nos mostre o caminho e venha a era dos gente boa!
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