Hoje estréia em 325 salas no Brasil "O Rastro", um longa-metragem de terror com uma trama muito interessante: trabalhando no desativamento de um hospital público caquético, João, o médico responsável pela transferência dos pacientes da UTI, dá pela falta de uma criança e ao ir atrás do rastro desse desaparecimento encontrará perturbadoras verdades. Bati um papo com meu amigo André Pereira (Mato sem Cachorro), roteirista, junto a Beatriz Manela, do filme para conversar um pouco especificamente sobre o processo criativo do filme, mas também sobre o ofício do roteirista em geral. Espero que curtam e não deixem de assistir o filme no cinema! Filme de terror tem que ver no cinema!
André Pereira é um cara muito peculiar. O conheci na faculdade de cinema da PUC-Rio, para, só depois, alguns anos mais tarde, descobrir que ele cursava economia(!) na IBMEC(!!) Ele era amigo de escola de um colega filho da puc (Vitor Leite, hoje produtor na TV Zero) e, amante do cinema como era, não só frequentava os eventos e screenings do curso, como participava de vários curtas pontifícios, seja produzindo ou escrevendo. Anos depois, por coincidências do destino, acabamos nos encontrando no "mercado" e desenvolvendo uma amizade natural, afinal, além da história doida, temos diversas semelhanças: tricolores, roteiristas na mesma faixa etária, ambos casados com uma Luisa e outras coisas.
Além da boa companhia e papo interessantíssimo, André é não só um promissor roteirista, mas também um excelente produtor e, junto com a também querida (e feríssima!) Malu Miranda, fundou a Lupa Filmes - o que faz da produtora um dos melhores lugares para um roteirista trabalhar... tive a oportunidade de desenvolver um projeto com eles e, nossa!, é muito bom quando a discussão do roteiro é em alto nível; com eles sempre o é. Agora, 4 anos depois de lançar a comédia blockbuster "Mato sem Cachorro"(escrita também por André), a Lupa Filmes traz aos cinemas... um filme de terror!
André, Malu e Beatriz Manela na pré-estréia de "O Rastro"
Muita gente fala de "pigeonhole" do
roteirista (Saca? Quando colocam ele numa "caixa" de gênero e ele não consegue
mais fazer outros projetos de outros estilos, porque na cabeça de todo mundo
"ele é um roteirista de X e não de Y")... Você saiu do "Mato sem Cachorro" (2013), uma comédia blockbuster de mais de 1 milhão e 200 mil pessoas para
um filme de terror... foi uma decisão consciente ou foi por acaso?
Não foi uma decisão consciente, mas confesso que fiquei
muito feliz agora que você apontou isso! Na verdade, quando eu e a Malu (Miranda,
produtora de "O Rastro") criamos a Lupa Filmes, nós começamos a desenvolver os
dois projetos praticamente juntos: uma comédia romântica que se tornou o "Mato
sem Cachorro"; e um filme de terror com o João Caetano Feyer que eventualmente virou "O Rastro". A
diferença é que a comédia romântica levou 4 anos para ser desenvolvida,
produzida e lançada, enquanto "O Rastro" demorou o dobro do tempo. Mas eu
sempre gostei de filme de gêneros diferentes. Eu achava incrível que o William
Goldman e o Rob Reiner conseguiram fazer um clássico de fantasia/aventura infantojuvenil
como "The Princess Bride" (A Princesa Prometida) e logo depois um suspense do Stephen King como "Misery" (Louca
Obsessão). E olha que o Rob Reiner ainda fez "When Harry met Sally" com a Nora
Ephron entre um e outro!
E o plano pro futuro é continuar
fazendo mais coisa diferente? Ser pigeonholed como o cara que não é pigeonholed?
Um Jonathan Demme/Richard Linklater do roteiro?
Seria muito maneiro! Por enquanto, eu tenho uma outra
comédia que já estou desenvolvendo há 4 anos e já comecei a trabalhar também em
outro filme de terror. O problema é que os projetos de cinema demoram tanto
tempo que não consigo controlar a carreira desse jeito, mas seria incrível se
pudesse intercalar. Na verdade, eu acho importante você escrever num gênero que
goste e que se sinta confortável. Por um acaso, eu amo comédia e
terror/suspense. "O Rastro" foi uma grande imersão nesse universo das minhas
referências pessoais de filmes de gênero. Mas não sei se conseguiria ir pro
drama ou melodrama, por exemplo. Eu consigo ver filmes clássicos dentro desses
gêneros, mas não é uma coisa que me atrai. A comédia e o terror me atraem!
André em uma de suas peregrinações por hospitais cariocas durante a pesquisa de "O Rastro"
Vamos falar do processo criativo
do "O Rastro"... sei que envolveu muita pesquisa. Mas no que
consistia a pesquisa? Você precisou entender melhor o sistema de saúde
brasileiro para conseguir encontras as melhores formas de adaptar sua idéia e
extrair o medo e o suspense da coisa? Ou foi através da pesquisa que você chegou
ao mecanismo principal da trama?
O desenvolvimento do "O Rastro" foi um processo intenso de
aprendizagem que durou quase 8 anos. Aprender a fazer pesquisa foi uma grande
parte disso. No "Mato sem Cachorro", eu tinha feito muito pouca pesquisa. Eu
não tinha familiaridade com o processo. Eu achava que num roteiro original o
importante era o processo de criação do universo. Quando eu comecei a escrever
"O Rastro" com a Bia Manela, a nossa principal pesquisa era dentro do gênero do
terror. A gente começou a procurar filmes, séries, livros, contos, quadrinhos,
anime/mangá... Tudo pra tentar descobrir que tipo de filme que a gente queria
fazer. Nosso primeiro instinto foi ir pra base do terror na literatura gótica.
A gente ficou tão obcecado com o "The Turn of the Screw" (e a adaptação pro
cinema, "The Innocents") e o "Rebecca" do Hitchcock, que resolvemos propor uma
trama que se passava em uma casa isolada no campo. A gente passou alguns anos
desenvolvendo essa história que também seguia essa linha do subgênero do
sobrenatural/psicológico, mas num ambiente remoto até que percebemos que
estávamos tão presos as nossas referências que não nos conectávamos mais com
aquela trama. Não tinha nada pessoal nosso naquele universo. Foi nesse momento
que a gente reinventou o filme e começamos a pensar "o que nos dá mais medo?".
Nada dá mais medo do que ficar doente ou ter que depender de um hospital...
Exatamente! A gente tem muito medo de hospital! Mas aí surgiu essa necessidade da
pesquisa porque nós dois não conhecíamos nada desse universo médico. A gente
começou com uma pesquisa com médicos, mas depois foi ampliando para diretores
de hospital e eventualmente o pessoal da Secretaria de Saúde. O quanto mais a
gente se aprofundava na pesquisa, mais a gente achava a realidade bem mais
interessante que a ficção. O sistema de saúde brasileiro tem questões muito
complexas, então foi muito importante pra gente entender os temas que a gente
queria abordar. Ao longo do processo de desenvolvimento, alguns hospitais no
Rio estavam sendo fechados e foi aí que surgiu esse caminho da Central de
Regulação, que é uma área estratégica da Secretaria de Saúde que controla os
leitos dos hospitais. Ou seja, a gente começou a pesquisa procurando respostas
para algumas idéias de trama que estavam surgindo, mas depois a pesquisa acabou
trazendo outras questões que ditaram a narrativa do filme. Outro
ponto importante de pesquisa que eu nunca tinha usado foi uma consultora
médica. Ao longo do desenvolvimento, a gente conheceu uma médica incrível da
nossa idade, a Lila Domingues, que virou nossa consultora oficial. Como a gente
ficou muito amigo, podia ligar pra perguntar, "Lila, como que a gente mata o
personagem tal?"
Com um castiçal no salão de jogos?
E, assim... mesmo você e a Malu sendo mega
eficientes, no Brasil nosso processo do desenvolvimento até a filmagem é MUITO longo. E pior: picadinho. Você tem um "rush" de excitação e
trabalho aqui, mas logo logo a vida e o processo acabam diminuindo isso e aí depois acontece alguma coisa que faz voltar a
pegar fogo e repete todo esse processo de novo algumas vezes. Embora a política esteja sempre em
constante ebulição e transformação, é inegável que durante todo esse processo
de "O Rastro"até hoje, a política tava mais aquecida do que nunca, né? Com
diversos escândalos pipocando em todos os âmbitos: nacional, estadual...
A própria saúde, especificamente. O (ex-secretário de saúde do RJ) Sergio Côrtez...
Exato! Isso foi um problema pra você e pra sua história ou isso jogou
a favor? Você tem alguma dica pro roteirista que tem que enquadrar uma
realidade que está em constante mudança?
É muito bom dar essa entrevista, porque você sabe como é viver esse processo
constante de começar/parar na pele. Acho que poucas pessoas falam sobre a
dificuldade de desenvolvimento de roteiro no Brasil por essa ótica de
interrupções do processo criativo. E devíamos colocar mais em pauta isso para um melhor desenvolvimento do nosso mercado. No caso do "O Rastro" foi interessante, pois
o contexto político acabou acompanhando o desenvolvimento do filme. Eu queria
poder dizer que foi planejado, mas fomos muito impactados pelo acaso. O filme
sempre teve um contexto político; mesmo quando a história se passava numa casa isolada. Mas
quando fizemos a mudança para o hospital resolvemos abraçar esse pano de fundo
e enraizar a história na nossa realidade. A gente brincava que queria escrever
um terror estilo David Simon, por causa do "The Wire", que retrata tão bem a
realidade de Baltimore. Mas conforme a gente foi acompanhando os hospitais
fechando, as políticas públicas da Secretaria... tudo pra gente soava tão
estranho! Eu e Bia somos muito pessimistas, céticos. Mas naquele momento
existia uma euforia no Rio por causa da Copa e das Olimpíadas... então, foi muito
estranho acompanhar a transformação da cidade nesses oito anos. Quando
começaram a revelar os escândalos no Governo, que incluíam investigações na
Secretaria de Saúde, foi surreal. Nesse caso, infelizmente foi algo favorável para
o filme, pois a intenção sempre foi retratar que a realidade é muito mais
assustadora que a ficção. Mas acho que o roteirista tem que tentar acompanhar a
realidade. O problema é que a história está sempre em transformação.
Você também é produtor. Coloca o
seu boné de produtor pra responder essa: terror sempre fez muito sucesso aqui no
Brasil com filmes gringos, certo? Desde os clássicos "Alien", "Sexta-Feira 13" do Jason, "A hora do pesadelo" do Freddy Krueger... até os mais recentes "O chamado",
"Atividade Paranormal"... Com isso tudo, por que é um gênero tão pouco explorado
pelo cinema brasileiro?
Esse foi um dos grandes desafios do filme. Desde o início,
eu e Malu mapeamos essa questão. A gente fez um levantamento dos lançamentos
internacionais em mais de 100 salas no Brasil e descobrimos que eles tinham uma
média de quase 700 mil espectadores.
Caralho!
Foda, né? No entanto, o filme de gênero brasileiro
tem uma média de menos de 15 mil, sendo que o maior lançamento de terror no
Brasil desde a Retomada fez 84 mil espectadores. Daí surge a dúvida: o público
desses filmes rejeita os lançamentos brasileiros? Mas o problema é muito maior
porque a amostragem é muito pequena. O lance é que a gente produz pouco filme de gênero no
Brasil. Eu acho que tem coisas incríveis sendo produzidas dentro do cinema
fantástico brasileiro! Você pega o trabalho do Rodrigo Aragão, o Rodrigo Gasparini/Dante
Vescio ou o Marco Dutra/Juliana Rojas... são MUITO maneiros! E eles também são
diferentes entre si. Isso sem falar em cineastas com curtas-metragens incríveis
que estão começando a dirigir longas como o Dennison Ramalho e a Gabriela
Amaral Almeida. Acho que existe uma dificuldade muito grande na distribuição e
exibição desses filmes. Mas também precisamos acreditar na possibilidade de
levar para o público um gênero que ele talvez não esteja tão acostumado a ver
aqui!
"O Rastro" na CCXP Recife: estratégia de divulgação promocional certeira
Falando nisso, uma coisa que foi muito elogiada, e me deu uma mega dor de cotovelo de não estar aí pra ver, foram as experiências imersivas que vocêz fizeram pra divulgação. Lembro de tanto você quanto a Malu viajando pras convenções de filmes de gênero e tech e voltando cheios de idéias...
Pois é! Eu e Malu somos muito obcecados com o lançamento dos filmes, então
tentamos criar ações específicas para atingir essa base que curte filme de terror, mas não vai ver o terror brasileiro: a gente construiu um
hospital mal-assombrado na Comic Con em São Paulo; a gente fez set visit com o
pessoal do Arrow in the Head, do JoBlo; a gente criou uma ação de realidade
virtual em parceria com a Arcolabs e Fableware; a gente participou de eventos
como o CCXP Recife e o Geek Game no Rio; a gente fez uma ação nos cinemas onde
a pessoa entra numa gaveta de necrotério para assistir o trailer do filme... A
gente tentou criar oportunidades para promover o filme de uma forma diferente.
Isso foi todo um outro processo, mas que foi uma experiência incrível!
Gênios. A da gaveta foi demais.
Você entraria?
Nem à pau. Agora coloca seu boné de
roteirista de novo: o que é mais diferente (se tiver algo) na hora de escrever
um filme de terror?
O mais difícil foi aprender a escrever algo dentro de um
gênero novo. Eu sempre amei filmes de terror e já tinha escrito curtas com
alguns elementos fantásticos, mas sempre caindo para o humor negro. Quando a
gente começou o processo do roteiro percebemos que tínhamos que adaptar a
escolha de palavras, a cadência, a quebra dos parágrafos de descrição... tudo
para chegar em um formato de roteiro que fosse mais representativo do gênero.
Eu comecei a ler mais roteiros de terror e alguns me ajudaram bastante, como o
"Alien" original do Dan O'Bannon. É engraçado porque o texto do roteiro é muito
restritivo (sempre terceira pessoa no tempo presente), mas depois você descobre
que algumas escolhas podem deixar as rubricas cômicas ou dramáticas
ou assustadoras. Isso foi um desafio muito legal. A literatura ajudou bastante
também nesse sentido. A gente pegava sequências de terror dos livros do Stephen
King para entender como ele usava a construção das frases e a escolha dos
adjetivos para causar desconforto ou pavor.
Pra finalizar: qual foi o aspecto mais difícil
desse roteiro? E o mais prazeroso?
O mais difícil foi explorar um gênero que a gente tinha
pouca experiência prática. O processo de desenvolvimento envolveu uma grande
curva de aprendizagem junto com o João Caetano e a Malu. Fora isso, eu tinha
escrito o "Mato sem Cachorro" sozinho, então foi difícil também aprender a
escrever em dupla. Eu conheço a Bia há muitos anos e já tínhamos trabalhado
juntos em um curta, mas tinha sido um processo completamente diferente. No "O
Rastro", a gente demorou para encontrar uma forma de trabalho que funcionasse
pro nosso estilo. Tentamos algumas técnicas diferentes (dividir cenas; escrever
uma parte depois trocar; escrever juntos...) até encontrar uma dinâmica ideal.
E acho que passar por essas dificuldades também foi o aspecto mais prazeroso.
No fundo, a gente desenvolveu uma forma de trabalhar que vai além do "O Rastro".
Acho que a gente ainda está engatinhando em como explorar o cinema de gênero,
mas pelo menos desenvolvemos uma forma de trabalhar particular. Ao longo do
processo, eu não sabia se seria capaz de fazer um filme desse, mas agora sinto
a vontade de continuar explorando esse universo!
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