O produtor americano Ross Putman criou o twitter @femscriptintros onde ele coloca as descrições dos personagem femininos que ele encontra em diversos specs scripts que chegam até ele. O twitter é muito interessante para que, fora de contexto, pensemos o quanto podemos melhorar a descrição dos nossos personagens.
O que se encontrou foram diversas descrições de personagens femininos que focavam na "beleza" do personagem e em diversos momentos eram sexistas. É fato que isto acontece mais com personagens femininos (infelizmente em sua maioria coadjuvantes e "serventes" a personagens masculinos; é ainda um mundo machista), mas acontece também com personagens masculinos. Vejo direto por aí. Parece que nós, roteiristas, já temos os personagens tanto na cabeça, que ficamos com preguiça nessa parte e fazemos uma introdução enfadonha e "fácil", superficial.
O grande erro é que na hora de descrever seu personagem, você tem que pintar um quadro da personalidade e não da figura dele/dela. Tá no nome: personagem e não figuragem. A beleza e outra característica física qualquer só deve vir notada quando ela for essencial para a história. Se o personagem for claramente mais bonito que o comum (e isso siginificar algo à trama, tipo; é a história de alguém que não consegue arrumar namoros, pois sua beleza assusta), se o personagem for claramente mais sarado que os outros (um antagonista que faz os personagens preguiçosos sair do lugar ou o antagonista dos preguiçosos que claramente se mostrará, por ser fit, uma ameaça ao objetivo final), se o fato dele ser loiro/moreno/careca representar algo mais a frente na história, oferecer algum payoff (nem que seja uma piada)...
De resto acho que o importante é trazer características de comportamento (e não físicas!) que ajudem o leitor a visualizar aquele tipo de pessoa. Até porque as características físicas vão pro espaço dependendo do ator. Você escreveu "JANE (20), loira, olhos azuis penetrantes; atração imediata" - que, por sinal, é uma péssima descrição - porque queria convir um personagem que tivesse uma presença magnética e desconcertante - que, por sinal, é uma descrição muito melhor - e esse personagem poderia muito bem ser, sei lá, a Maria Casadeval, mas você colocou "loira, olhos azuis" e com isso tornou a coisa toda mais difícil. O produtor de elenco vai ficar tendencioso a procurar loiras de olhos azuis (à toa, porque você nem precisa de fato que ela seja loira) e mesmo que ele/ela consiga superar isso e pensar em uma atriz não-loira, no mínimo, vão pedir pra você editar, trocar pras características dela, de maneira que sua estrela se sinta prestigiada pro papel.
Falar é fácil... vamos ver como eu fiz com a descrição da Hortência, personagem principal do meu longa "A esperança é a última que morre"?
A doce, mas meio atrapalhada, HORTÊNCIA (30) vem andando em clima misterioso fazendo sua cabeça.
Perceba que eu não dei nenhuma descrição de "beleza" e nem física. Fui 100% comportamental. De repente um leitor mega desavisado imaginou ela super alta com cabelo preso e preto. Outro, que não viu o filme, mas sabe que ela foi feita pela Dani Calabresa, imaginou-a como a atriz e sua persona e trejeitos. E quem assistiu visualizou o belíssimo trabalho de caracterização que a Dani fez junto à maquiagem (Lucila Robirosa), figurino (Ana Avelar) e arte (Claudio Amaral Peixoto e Lulu Continentino), com cabelo cacheado, óculos e figurino europeu antigo. Independente disso - porque ela poderia ser de todos esses jeitos, dependendo de mil outros departamentos e desdobramentos do longo processo que é fazer um filme (cinema é um esporte coletivo, lembram?) - o mais importante é que todos a imaginaram de forma DOCE e MEIO ATRAPALHADA, como descrito no roteiro. Uma pessoa boa que acaba metendo a mão pelas pernas em meio às suas trapalhadas e sonhos; que é exatamente quem é a Hortência na história do "A esperança é a última que morre".
Apesar de, mais a frente no roteiro, eu descrever mais do estilo de Hortência (cito em outro momento "A CAM/ abre e revela Hortência de terninho, mas cafona - algo não encaixa.") geralmente eu prefiro pensar em curtos (mas certeiros) adjetivos comportamentais/espirituais e deixar que as ações e, principalmente, a voz, o jeito como meu personagem fala, completem as lacunas de quem o personagem é na cabeça do leitor. Sempre acho que o mais importante e interessante é o leitor descobrir sozinho através das ações dos seus personagens - tal como o ritmo e o clima do filme, através das imagens que você pintar.
Nesta mesma lógica, comentando sobre a polêmica conta do twitter, o excelente podcast Scriptnotes de John August e Craig Mazin ofereceu boas saídas para superar este problema de má escrita. Craig Mazin deu uma dica muito interessante de, na hora de descrever, focar em dois departamentos que não só ajudarão a dizer quem é o personagem, como ajudará a produção a ser mais assertiva: cabelo & maquiagem e figurino. Pensar em características marcantes daquele personagem traduzidos nestes departamentos mas não necessariamente ser específico à roupa que está usando ou "ah, ela usa sombra azul no olho". É maquiagem/figurino de caracterização e não de efeito. É dizer "é bronzeado" ou "parece nunca ter visto o sol". É dizer "cabelo impecavelmente penteado e aparado com gel" ou "cabelo de aspecto sujo; não tem tempo pra isso". Isso tudo diz muito do personagem e ajuda as pessoas envolvidas no processo a entenderem e montarem o personagem junto à você.
Resumindo: não seja sexista e nem enfadonho. Não descreva o personagem como se fizesse um retrato falado; descreva-o como se você estivesse fazendo um discurso de um prêmio de "conjunto da obra" daquele personagem, mirando nas características da personalidade dela e não da aparência física. Quando fizer sentido para aquele personagem específico, dê exemplos brandos do cabelo & maquiagem e figurino que contribuirão para pintar a personalidade (e não a aparência física!) do personagem.
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