Semana passada uma importante decisão que muito afeta o nosso mercado foi tomada no Superior Tribunal Federal. Por unanimidade os ministros votaram pelo fim da censura prévia de material biográfico não-autorizado. O que isso significa exatamente? Aqui no Brasa, o indivíduo tinha direito autoral total e irrestrito sobre sua imagem e o entendimento jurídico desta imaegm ia, inclusive, à mera menção de uma pessoa. Ou seja, antes, caso alguém fizesse alguma obra de ficção se utilizando de pessoas e acontecimentos reais (ainda que meras menções/aparições), este alguém teria que ter a autorização das pessoas reais (ou seus herdeiros) para tal, sob pena de, não tendo, ver a obra embargada antes mesmo de ela ir ao ar/ser publicada. Uma censura prévia. Agora não mais; a pessoa real pode contestar a obra somente à posteriori, processando o autor, quando o caso, por difamação, injúria e/ou calúnia, mas não mais por ser direito dela vetar que se fale sobre ela.
Aviso logo que sou um cara liberal. É da minha filosofia e crença que absolutamente TUDO seja liberado, então é óbvio onde eu fico nesta discussão. Tenho dificuldade de relativizar o argumento de pessoas "comuns" que vejo por aí dizendo-se contra tal liberação, pois não gostariam que falassem de sua vida. A Ministra Carmem Lucia falou muito bem: viver é perigoso; o único controle autoral sobre nossa vida se dá na forma como a vivemos. Excessos e abusos por parte de quem retrata a vida dos outros vão acontecer e devem ser regulados pela sociedade que irá consumir estes produtos. Eu não gastarei meu dinheiro para ver produtos éticamente questionáveis, vexatórios, apelativos, que injustamente denigrem a imagem de alguém real e não darei luz à eles. E é assim que isso se regula. A verdade é que a sociedade gosta deste tipo de produto e mesmo estes contra a liberação consomem com afinco esta cultura de linchamento alheio e novelas pessoais privadas. Quando param pra pensar acham ruim, mas se embrenharam pra ver as fotos privadas do bebê real, debatem entre si sobre teorias acerca do relacionamento de alguém "público", fofocam sobre o estado de saúde mental/financeiro de alguém que está na pior e por aí vai.
Pela parte das pessoas "famosas" que lutaram contra esta liberação, entendo cristalinamente o motivo - que passa ao largo do que eles venderam como motivo (e os "comuns" reproduziram, como explicado no parágrafo acima): é dinheiro. "Por que vão fazer dinheiro em cima da minha vida? Não, não. Só se pagar uma graninha aqui". Justíssimo que eles pensem assim e tentem fazer este acordo. Mas o cineasta, biógrafo, o que seja, tem que ter chance de negar e fazer sozinho. Veja a disparidade de poder entre as partes: não precisa ir no exemplo do biografado estar vetando uma obra sobre a vida dele. Imagine um filme sobre um fato que não tem dono. Sei lá, a Copa do Mundo de 1994; algo que aconteceu sob nossos olhos e foi documentado de diversas formas, especialmente pelo jornalismo (que não tem esse problema de autorização, vai entender...). O Ricardo Rocha, zagueiro que sequer jogou um jogo, pode vetar o filme pois ele não autorizou a obra e um dos personagens - super coadjuvante, alívio cômico - era um retrato dele. O produtor, que gastou uma grana pra desenvolver o projeto, filmar, distribuir, não pode nem colocar no cinema, pois o juíz dava ganho de causa imediato e ninguém podia nem exibir.
Propriedade intelectual é algo que dá muito dinheiro. Tem famílias que vivem disso. Netos que não trabalham suas próprias coisas/carreiras. São da Fundação vovô fulano e vivem de autori$ar as obras de seu descendente notório para uso comercial. Mesmo que não seja difamatório e calunioso, um fato biográfico não conhecido ou já esquecido pode vir à tona e manchar a imagem e atrapalhar os negócios do neto, ao depreciar o valor do autor. Entendem? O lance é que, como sempre, culpamos o sofá. Temos que separar a obra do autor. Eu tranquilamente consigo admirar a obra de um cara que acho abjeto e achar um cara do caralho com um trabalho bem fraco. E se a maioria não sabe/consegue fazer, de toda forma não podemos nos nivelar por baixo. Ser condenscendente. Temos é que puxar a galera da ignorância e trazer à luz. A liberdade é o único caminho dela fazer suas próprias escolhas.
Estas são as "perdas" advindas da mudança às quais todos terão de se ajustar e fazer o melhor disso. Mas falemos dos "ganhos", que são insofismavelmente maiores. Agora talvez recuperaremos a nossa capacidade de debater fatos recentes, de interesse público, que eram protegidos por esta regra. Chega de ter que voltar 100 anos (pra vencer os direitos autorais e não ter mais herdeiro elegível à danos etc.) pra fazer filme sobre fato real. Ninguém aguenta mais a chegada da corte portuguesa no Brasil; tem que forçar muito a barra pra achar um ângulo novo congruente com o momento atual. Tem muita coisa atual cujos desdobramentos sentimos no dia-a-dia que simplesmente não são abordadas pelo audiovisual. Teremos chance, especificamente no cinema, de ter mais filmes "urgentes", "quentes", com temas facilmente reconhecíveis para a atração do público. Teremos a chance de amadurecer enquanto sociedade (e indivíduos) democratizando pontos de vistas e aprendendo com erros e acertos questões advindas, direta e indiretamente, deste ato de falar do real. Vamos andar. Movimento é chave. Estagnação é a morte.
Que aproveitemos a liberdade da melhor maneira possível e cresçamos em todas as esferas. Ainda há outras coisas a serem discutidas e repensadas relativas ao uso de imagem, se me pergunta, mas, por ora, comemoremos este avanço.
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