Q&A

Q&A 06/03/2015

By Eduardo Albuquerque - 3/06/2015

Todas as sextas-feiras eu respondo perguntas enviadas pelos leitores do blog. Se quiser me mandar uma, acesse este link e aperte enviar (ou tente nos comentários!).

Vamos ao desta semana!

Boa tarde, Eduardo
   Escrevi um livro e gostaria que a minha história se transformasse em um filme título* Meus Cães de Alma), baseado numa história real. Por onde devo começar ?

Agradeço,
Marat Rossi

Olá, Marat!
Que nome legal e diferente você tem. É de verdade ou artístico? Se for de verdade, agradeça seus pais, pois seu nome profissional é muito bom e marcante (não é nada não é nada; é muito mais fácil de encontrar no Google que "Eduardo Albuquerque", sobrenome e nome mega comuns, hunf!). Se for artístico, parabéns por entender que não basta um produto bom; para se manter em uma indústria tão concorrida como a de livros, tem que se destacar sempre que der para que sempre lembrem de você.

Tendo dito isso, espero que sua cadeira seja confortável, pois a resposta é longa, mas antes das coisas práticas, chamo de cara atenção ao que você colocou como "baseado numa história real". Se o seu nome, ao meu ver, te destaca, você tem que considerar se a menção de "baseado numa história real" não faz o inverso e te coloca lado a lado com "todo mundo". Falo isso, pois, do ponto de vista do mercado audiovisual, este sufixo não é bem visto. Primeiro que ao entregar o roteiro para um produtor, ao ver este complemento, ele vai ficar tenso na cadeira e perguntar "Mas você tem todos os direitos?". Sim, pois, por ser "baseado numa história real" e estando num país onde a convenção de direito autoral é super restrita, você abre a porta ainda mais para processos judiciais quando coloca isso no título. A simples caracterização não autorizada de uma pessoa/fato existente no filme pode ser motivo para derrubada do filme. Como te googlei, sei que será difícil de isso acontecer; não imagino que seus cachorros tenham advogados hehe Mas para explorarmos o assunto, suponhamos que seu filme fosse a história de superação de sua família que perdeu tudo no Confisco da Era Collor, chegando a morar na rua. E aí tem uma cena - que é verdade; você estava lá! - na qual vocês conheceram, sei lá... o Paulo Francis(!) e ele fez um comentário sarcástico zoando o Collor. A família do Paulo Francis (pelo motivo que for) não aprova a cena de 3 minutinhos que você inventou dele e na justiça derruba o filme. E podem ser outras pessoas até mais próximas: e se o seu vizinho se ver no vilão (ou até o herói) do filme e se sentirem no direito de travar o filme (por honra ou por recompensação financeira) e o consegue na justiça? Improvável? Mas possível. No mínimo vai custar dinheiro processual, o filme vai atrasar e... o produtor preferiu nem ler e foi buscar um filme que dê menos dor de cabeça. Tudo por causa do "baseado em fatos reais" acoplado no título. Pra que você entenda o escrutínio da coisa, mesmo em filmes "100%" ficção (no próximo parágrafo você entenderá o porquê das aspas) a simples menção de marcas em piadas ou o nome do personagem e mil outras coisas é checada por um departamento jurídico para ter certeza que o filme não vai ser prejudicado por semelhanças com o mundo real, pois esta atividade custa muito caro e sua produção é muito pequena para valer a pena o risco criativo e o tempo gasto. Uma pena, mas é o que é.

E mais, ainda no uso de "baseado em fatos reais"... além da questão prática, ele é visto como redundante, pois TODA boa história é baseada em fatos reais, não acha? O escritor tira de sua experiência própria as vozes e os tons do filme. Mesmo que ele não perceba ou queira, ele o faz. E que bom, porque aqui a imparcialidade não é desejada. A indústria artística em geral quer pessoas com uma voz. Quer produtos que digam algo e que esse algo venha de dentro. Por causa deste uso constante e inapropriado, o "baseado em fatos reais" acaba sendo visto como amador.

Então Conselho #1 de por onde começar? Tira isso do título (Acho que nem está - não está no livro; porque estaria no filme? Mas de toda forma é importante deixar claro). Não vai te fazer muito bem pra sua venda e só abre porta para o acaso ruim. Acho que a pessoa que trabalha em atividades artísticas tem que partir sempre do pressuposto que ninguém se importa com o que você diz/escreve/pinta/canta. É uma constante luta pela atenção do consumidor. Então, "aconteceu comigo" não importa, pois você não importa. A adição do "baseado em fatos reais" só vale pra chamar público, quando você tem um filme que está dando luz a informações pouco conhecidas de fatos/personagens "universalmente" célebres. Mas, aí, então, é que você tá ferrado na questão dos direitos biográficos das pessoas etc. e tal. Abrace a ficção!

PS: parece paradoxal, mas este conselho é só para título e venda (e ainda assim, venda interna. às vezes é bom pra venda ao público ter o "baseado em fatos reais"). Uma vez realizado, acho que pode valer a pena dentro do filme colocar "esta história é ficcionalizada à partir de fatos reais" ou coisa do tipo, pois mexe com quem vai consumir o filme, que passa a tentar adivinhar o que aconteceu de fato e o quê é invenção do escritor.

Conselho #2: Fiz um post sobre dois livros legais sobre estrutura de roteiro. Se der pra você comprar e ler, acredito que vai dar uma boa base para entender a estrutura narrativa de um longa-metragem.

Conselho #3: Como você escreveu que é um livro que você quer adaptar pra roteiro, eu sugiro que você leia o Q&A de 13/02/2015, no qual respondi a pergunta do Bruno Janot sobre Roteiros Adaptados. O importante, seja livro pra roteiro, roteiro pra livro ou o que for é sempre respeitar o MEIO no qual você está inserindo sua história. Então, expandindo e trazendo para o seu caso; como fazer isso na prática? Primeiro procure elencar filmes que são parecidos com a sua história e devore-os. Faça anotações do que ocorre neles que você gosta. Tente encontrar os beats do roteiro dentro filme, preencha o beat sheet e anote a minutagem em que eles ocorrem dentro do filme. Depois, procure fazer uma lista de filmes que não são parecidos com a sua história, mas que você admira e reputa como um bom filme. Devore-os e entenda o quê é exatamente que você gosta e que pode ter também em seu filme. Cruze todas as informações da lista dos filmes parecidos e dos filmes admirados e veja o que é comum aos dois e pode ser absorvido ao seu storytelling. Que adaptação pode ser feita à sua história, ou melhor: o que da sua história não cabe na estrutura, no flow de um filme, e deve ser cortado? (Sim, desapegue! Seu livro é uma coisa. Seu filme será outro animal completamente diferente.)

Conselho #4: Eu sei que agora, depois de tudo isso você já está com a mão coçando para escrever o roteiro. Não o faça! Atrase ao máximo o momento de escrever de fato o filme. Comecei uma série de 4 posts sobre os documentos que fazemos antes de entregar o roteiro final de um filme. Acho fundamental que você faça cada um deles, em ordem.

Depois que você fizer todo esse trabalho pregresso, a história já estará bem sedimentada na sua cabeça. É descolar um programa de escrever roteiro pra te poupar o cansaço e fazer a criatividade fluir e partir pro abraço!

Mas... relendo tudo que escrevi, pensei: e se Marat não quiser escrever o roteiro? Apenas quer que sua história seja filmada. Afinal de contas, você disse transformar em "filme" e não roteiro. Que você o escreveria foi inflexão minha.

Bom, se for isso - que vergonha, saí falando pacas e você nem pra dizer nada! =P - eu diria que o melhor caminho pra isso é você... escrever um roteiro. Ha! Mas sério, nesse mercado uma adaptação nunca é vendida do mercado editorial para o audiovisual. É sempre o audiovisual que busca, garimpa, pinça no editorial.

Há casos sim de alguém se apaixonar loucamente por um livro e enxergar nele um filme e ir atrás, comprar os direitos do livro e tentar realizá-lo. Mas tudo no mercado audiovisual é uma aposta tão grande, que acho que estes casos são muito mais baseados no desafio excitante do produtor que "viu" algo naquela história e foi atrás do autor e, sem contar pra ninguém, conseguiu comprar os direitos daquela história que é seu grande achado, uma pequena jóia pronta para ser "descoberta" pelo grande público graças ao seu esforço e visão. Por conta deste processo, ele se sente um pouco autor. E não deixa de ser. Faz sentido. Então, acho que quando o autor bate na porta do produtor, quebra-se um pouco este encanto. Porque o produtor, escaldado, acostumado com todo mundo batendo à sua porta, paradoxalmente à idéia de todo o esforço da descoberta do livro, pensa "se fosse especial, eu já saberia de sua existência".

Então, se você só quer vender seus direitos e ver na tela, o que você pode fazer é torcer pro seu livro ser um grande sucesso de público e/ou alguém da indústria ter acesso a ele e perceber nele o potencial de dar um bom filme e pagar o que você acha justo pelo direito de exploração (que é bem pouco =/ mas, de fato, pelo menos você não fez mais nada e ganhou uma graninha). Ir em palestras e festivais para abrir contato e graciosamente encher o saco deles pra fazer um filme sobre a sua obra etc.

Mas acredito que as chances do seu livro ser transformado em filme aumentam bastante se você estiver com a disposição de agir como produtor também, fazendo a sua parte e investindo o que você pode (ou tempo ou dinheiro ou sua rede de contato) e escrevendo um roteiro, porque aí o produtor está lidando com algo menos arriscado. Porque (i) é mais efeciente comprar um roteiro, que é a peça final de um filme, do que comprar um livro que PODE dar um bom filme; você só vai saber se a história traduz para tela de fato quando escrever o roteiro e (ii) é mais barato para o produtor negociar com uma pessoa só os direitos do livro+roteiro do que negociar com uma pessoa os direitos e com outra o roteiro. Então, de toda forma, voltamos pro começo, né? Mas vou te dizer: sem preguiça! Escreva o seu próprio roteiro; você consegue! Com ele embaixo do braço abrem-se portas como concursos de roteiro, onde você pode fazer nome, contatos diferenciados com produtores e até dinheiro. Existem editais específicos para roteiristas iniciantes, os quais você pode usar como argumento para um produtor para que ele entre na parada junto com você... 

O mercado audiovisual brasileiro é restritivo? Poderia ser mais bem estruturado? Depender menos de financiamento estatal ? Mais oferta? Sim. Deveria! Mas há caminhos. Com certeza há. Acho que sou prova disso. Tenho apenas 30 anos e desde que saí da faculdade nunca passei aperto. Não estou rico, vivendo uma vida de luxo, viajando etc. e tal. Mas pago minhas contas, moro sozinho. Amigos que estudaram jornalismo (algo muito mais "palpável"; um emprego e não uma carreira), contemporâneos a mim, enfrentaram mais perrengue com desemprego do que eu. Claro que cada um também é responsável pelo sucesso e fracasso próprio, mas sou otimista e acredito sim que vale a pena pra quem gosta do trabalho, é paciente e insistente. E mais; quanto mais pessoas com essas características tentarem, mais fácil, tranquilo e correto o mercado será e o que já é bom (eu acho, pra mim tem sido bem bom) ficará ainda melhor.

Então, espero que tenha te convencido do desafio e você decida virar colega não só de escrita, mas de roteiro para que, em breve, quando eu perguntar "Quem escreveu esse roteiro irado?" e me responderem "Marat Rossi" eu falar "Ha! Eu conheço esse nome!".

Espero ouvir mais de você!

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