RESENHA: Annie (2014)

By Eduardo Albuquerque - 2/25/2015



Quando fui assistir "Annie" (2014), confesso que estava com o maior sono e achei que ia dormir - o que não seria nenhum demérito para o filme; acredito que dormir durante uma exibição não deixa de constituir uma relação entre você e o filme; ele te tocou de certa maneira e às vezes até continua a interação, influenciando nos seus sonhos. A pior coisa para mim é a pessoa sair de uma exibição no meio ou desligar o filme e nunca mais querer ver o que acontece depois da parte na qual ele parou. Essa é a morte para o storyteller; sinal de que realmente você falhou com aquele espectador.

No entanto, tudo que precisou foi de 22 segundos (sim, VINTE E DOIS SEGUNDOS) para, através de suprema perícia em storytelling, virar a mesa e eu ficar extremamente acordado, ligado e amarradão neste remake desta velha e milhões de vezes adaptada história. Que opening image precisamente oportuno! Às vezes, teimosos como somos, diminuímos a importância de regrinhas e artefatos de estrutura, mas vendo este exemplo de opening image bem feito, não tem como não ficar sem graça e abaixar a cabeça humildemente. Em 22 segundos, você estabelece o tom do filme, o tema e o escopo do projeto. Com graça, charme e contundência.

E, no caso, levando em conta se tratar de uma adaptação de uma história tão manjada que já é remake e não adaptação, isso é extremamente delicado. "Annie" é um marco cultural dos Estados Unidos; a imagem da ruivinha orfã está sedimentada na cabeça branca americana. Fazer uma versão com uma Annie negra? Como superar esta barreira? Will Gluck e a craque Aline Brosh McKenna (“O Diabo veste Prada” e “Morning Glory”) o fazem abordando este problema e rapidamente o tirando do caminho e falando: opa, isso aqui é sobre a “Annie B”.


Don't be fooled by the color that I got, I'm still, I'm still Annie from the block(buster franchise)

Alguns dirão, com ou sem segundas intenções, se tratar de uma “apropriação cultural”, e eu poderia falar sobre isso por algumas semanas, mas a verdade é que a história de Annie faz muito sentido para a população negra americana. Talvez o negro que nasce hoje não veja assim, afinal há um presidente negro na Casa Branca(!), mas o adulto médio que vê o filme hoje vem de uma geração onde, mesmo com pais e mães, eram tal quais órfãos. Ainda imaculados pelo cinismo da realidade adulta, viveram o hard knock life de uma vida dupla – conciliando responsabilidades (do amadurecimento forçado e precoce; cuidando de irmãos enquanto a mãe trabalhava ou afundava em drogas e o pai – se soubessem quem é – estava na cadeia ou morto) e diversões (da sua óbvia tenra idade) – e a inocência e otimismo por um amanhã que no final das contas não virá. Não à toa, Jay-Z (que, ao lado de Will Smith e Jada Pinkett Smith, produz esta versão) alcançou em 1998 pela primeira vez o topo da Bilboard com o álbum “Vol 2... Hard knock life” que continha o que talvez seja seu maior hit (“Hard Knock Life”), sampleando as garotinhas do Annie original. Lembro que à época - 16 anos atrás. To velho... - muita da mídia branca achava curioso um hip hop sampleando Annie. Falavam que era muito irônico associar a imagem – à época – gangsta mafiosa de Jay-Z com a ruivinha que chorava as mágoas de ser abandonada e desconsiderada por todos à sua volta. Falhavam em ver o quanto isso tem a ver com toda esta geração de negros forçados a viver num lugar onde não havia espaço para eles.

Não que isso seja difícil, o que quase desqualifica o elogio, mas chorei diversas vezes durante o filme; esse assunto “criança bastarda” sempre bate fundo em mim. Mas independente da minha aptidão – considero uma virtude meu conhecimento não ter me tornado cínico e eu ainda conservar a capacidade de me emocionar, surpreender, desfrutar de um filme – o filme é lindo, muito bem construído. A inserção de Annie no ambiente urbano cai muito bem, sopra muito mais vida ao contexto. Difícil até lembrar que é um musical e falo isso como um elogio ao filme, mas de jeito maneira depreciação ao gênero musical, que admiro e curto de leve. Explico: o que eu gosto em musicais é exatamente algo que não acontece neste Annie (exceto o final, que é text-book musical); a mise en scene, a performance dos atores/dançarinos/cantores de outrora combinada com a destreza plástica dos diretores/coreógrafos que, juntos, criam um espetáculo visual de sentimentos através de grandes movimentos de câmera e mise en scene. Aqui, no novo Annie, se você tira a melodia e coloca só as falas; o filme se sustenta. Há cantoria, há alguma coreografia, mas o que norteia é o storytelling. A direção de Will Gluck não é tão incrível quanto seu roteiro com Aline Brosh McKenna. Mas nem sei se é justo pensar o quanto o filme seria melhor se houvesse uma exploração de mise en scene tradicional à musicais no cinema. O filme é o que é e parece ter rolado mesmo um investimento criativo em ser mais roteiro que direção; em ser enraizado num realismo, num urbanismo (daí até a escolha de um diretor relativamente inexperiente para uma franquia tão grande como essa). Então, melhor falar de quando isso serve como um trunfo, como em “Little Girls” com Miss Hannigan vendo literalmente garotas em tudo em seu apartamento (a mesa é uma garota, o abajour é outra...) e a sequência de “Tommorrow” (mais lágrimas) com Annie vendo pais e filhos em todas as coisas mundanas de uma cidade; é tão sutil e linda, feita de maneira tão simples, sem grandes coreografias exageradas e plásticas. E se o musical é meio isso mesmo – os personagens externalizam seus sentimentos em forma de cançôes – aqui o mesmo é alcançado de maneira ainda mais efetiva. Bom, pelo menos para mim fez muito mais sentido ela, após um setback de ter descoberto que em sua ficha de orfanato não tem qualquer informação de seus progenitores, ver pais e filhos felizes e com um sorriso melancólico cantar pra si mesmo “the sun will come out tommorrow” e, com o crescendo da música transformar o negativo em positivo (porque é isso que Annie faz do início ao fim de sua história; é do personagem), do que cantando para um cachorro que ela acabou de conhecer (como na peça da Broadway) ou para um quadro do presidente George Washington (!)(como na versão pra cinema de 1982).

O exemplo do vestido vermelho: usando e re-inventando signos do original; a melhor forma de se adaptar

O filme é inteligente e bem humorado na dose certa; com Gluck e Brosh McKenna não podia ser diferente. Os pontos de interseção com os outros Annies (pra quem gosta do cachorro, ele está lá com um propósito; para fazer Annie encontrar Stacks – a nova versão de Daddy Warbucks – de maneira que faça sentido) são eloquentemente adaptados, dando a sensação de ser o mesmo filme, ao mesmo tempo em que deixando claro se tratar de um novo animal. Esta conciliação é muito bem feita: na relação de Stacks com Grace Farell, nas piadas com o cabelo de Annie, em Stacks e seus maneirismos (e conexão com Annie, que faz bem mais sentido até pela questão racial, de alguém que se fez sozinho, diferente de Warbucks que não tinha muito porquê se conectar com Annie), numa atualização da relação do povo com políticos (muito menos idealizada do que na época da história original) e especialmente de Miss Hannigan cujo backstory de uma cantora fracassada e o arrependimento, ao final do filme, cairam muito bem.

A impressão, no geral, é que este Annie fez um trabalho de Script Doctoring nos anteriores, que possuíam supremos set pieces soltos com um arremedo de história sem muita fluidez ligando. Pegou estas peças e re-ordenou de maneira mais lógica, com stakes, reversals etc. e fez as perguntas que todo roteirista tem que fazer: “se isso é verdade, então o que mais é verdade? O que acontece depois disso?”. E, a partir disso, Annie se fez uma história bem ritmada, sem gordura, que constantemente renova o pacto de atenção com o espectador.

Até o cara que fazia o Mr. Eko no Lost (careca ao lado do Jamie Foxx) entrou na cantoria da cena final

Contudo, gostaria que o Terceiro Ato fosse mais trabalhado. Sei lá, é até estranho um filme com tanto domínio de si mesmo ter um desfecho tão méh. Tipo, não era só o Bobby Cannavale pegar o celular e ligar pros “pais” da Annie? Já falei aqui sobre tecnologias matando o terceiro ato, mas eles nem se incomodaram de inventar a desculpa de que o celular está fora de área etc. A perseguição toda não faz muito sentido: apesar de fazer algo moralmente errado, os "pais" não são do mal, estão ali no carro até se perguntando “ué, porque eles estão nos seguindo?”... então porque eles fogem da polícia, arrebentam o portão do parque etc.? E, poxa, o conflito de Annie, que acha que Stacks, que aprendeu a amá-la, só a usou para publicidade, é tão bom, que você não entende porque investiram tão porcamente na adrenalina que leva a esse momento. Mas eu chorei mesmo assim.

We *heart* Jamie Foxx

Por fim, uma menção total extra-roteiro: Jamie Foxx is such a star. Esse papel cai como uma luva pra ele, que apesar de, como todos sabem, cantar muito, quase não canta no filme. Este tipo de papel, de humor, do adulto com alma de criança... ele faz tão bem. Desde sempre. Desde o "Jamie Foxx Show", finado sitcom da finada TheWB. Eu acho ele um bom ator em todas as áreas. "Any Given Sunday", "Colateral", "Django"... mas depois de uma sequência tão grande de papéis “sérios” em filmes “sérios”, é bom revê-lo estrelando em um papel destes com uma atuação tão cheia de coração.

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3 comentários

  1. Nem sabia q tinha essa versão atual de annie... Agora eu quero ver!
    Obrigada por me atualizar cinematograficamente!
    Bjos

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    Respostas
    1. hehehe estamos aqui pra isso =P
      Tá nos cinemas ainda! O problema é que só tem dublado =/ (mas mesmo assim vale a pena!)

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  2. sou incapaz de ver filme dublado!!! bjs kiri

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