Defendendo-se ao longo dos tratamentos

By Eduardo Albuquerque - 2/16/2015



O processo de roteirização de um filme, especialmente no Brasil, leva bastante tempo. Eu comecei a escrever "A esperança é a última que morre" - meu primeiro longa, lançamento previsto para Agosto deste ano -  em 2009! Neste processo, é natural você escrever e re-escrever milhões de vezes. Cada vez que você re-escreve do início ao fim e entrega pra quem de direito for (produtores, diretor e equipe), chamamos de "tratamento". Quando foi filmado,  em 2013, o roteiro do Esperança tinha 12 tratamentos.

De certo que muito evolui e o tratamento final costuma ser sempre o mais enxuto e irredutível quanto à história. Mas há algumas coisas que você perde no caminho exclusivamente por conta deste processo longo e repetitivo, e não por serem obsoletas ou fracas. Especialmente piadas de diálogo e reversals/twist de trama na narrativa.

É normal, neste extenso processo, de tantas idas e vindas, que pessoas falem "ah, essa piada nem é tão boa... vamos cortar?" NÃO! Entenda que comédia é também a arte de surpreender. Quase como uma mágica: se você sabe o truque final, o "hook"/punchline... não tem tanto wow, tanta surpresa, tanta graça. Logo, é natural que lendo e relendo a mesma piada mil vezes, ela já tenha sido naturalizada. Parece "manjada". Mas oras; a piada do "é pavê ou pra comer"... aposto que um dia já foi inovadora e engraçada! Mas depois da milésima vez...

Só que o seu roteiro foi lido, ainda que milhões de vezes, por 10 pessoas (no máximo). Espera-se que seu filme/programa de TV seja visto por bem mais pessoas que isso. O que você tem que se ligar é: essa piada foi engraçada na primeira vez que leram? Está em linha com quem esses personagens são/a situação pela qual eles estão passando? Se foi "sim" pras duas perguntas, não tem dúvida; mantenha-a e lute por ela. Saiba explicar o que a faz engraçada (Roteirista tem que sempre entender a matemática de uma piada de diálogo) e lute pela sua permanência, usando como argumento este fator de repetição vs. frescor.

O mesmo acontece com plot twists/reversals na sua trama. Depois que você sabe que na verdade Verbal era o Keyser Soze em "The Usual Suspects" uma porrada de coisa fica meio "óbvia" e sem graça na história. Escrever é também uma arte de saber dosar a quantidade certa de dúvida e certeza para o espectador. De saber quando ele tem que estar à frente dos personagens na descoberta de fatos e quando ele tem que estar na mesma página, se surpreendendo junto com ele. Mas quem já leu e já sabe as respostas, fica "em vantagem" nessa relação e acaba, naturalmente, achando meio óbvia a conclusão. 

O roteirista deve sempre repensar todos os fatores de seu roteiro milimetricamente, mas neste caso o feitiço vira contra o feiticeiro e "over-pensar" te atrapalha. Respira fundo, não vá na onda de cara: no caso de twists/reversals, busque alguém que não sabe nada da história para ser o seu juíz. Deixa ele ler e não pergunte se ele foi surpreendido - pois o cara pode ser malandrão e sacado após algum tempo; isso pode acontecer por sorte ou competência independente da sua destreza em dosar as pistas. Pergunte se ele matou de cara o mistério. Isso é o importante: está muito na cara? Já vimos todas as surpresas do mundo; nunca haverá um Norman Bates neste estilo de novo. Já no caso da piada, acho que nem precisa rolar uma arbitragem: analise-a você mesmo. Entenda-a e veja se ela nunca teve graça de fato ou se os críticos já não se acostumaram com ela e agora estão te privando de criar o novo "é pavê ou pra comer".

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